Em defesa da língua portuguesa

Estão matando a língua portuguesa?
Variação linguística não é erro. Erro é não aceitar que a língua é viva.

Talvez você pense que mais uma vez eu estou atrasado para falar de uma data, mas se você prefere pensar que eu estou 2 dias atrasado, eu prefiro pensar que estou 563 dias adiantado. Estou falando sobre o dia da Língua Portuguesa, mais especificamente, 5 de maio, o Dia da Língua Portuguesa e da Cultura da CPLP ㅡ Comunidade dos Países de Língua Portuguesa ㅡ, o que significa que esse é um dia internacional, enquanto no dia 5 de novembro temos o Dia Nacional da Língua Portuguesa. Acredito que o assunto que pretendo discutir aqui se encaixe melhor na comemoração de novembro (você entenderá logo mais) mas não vou esperar só por um capricho, e também sempre posso fingir que estou 6 meses adiantado.

Países membros da CPLP (da esquerda para a direita e de cima para baixo): Angola, Brasil, Cabo-Verde, Guiné-Bissal, Guiné-Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor Leste

Com base em nossas conversas anteriores, podemos dizer que os humanos são muito difíceis de lidar, não conseguem aceitar mudanças, humilham outros humanos e se apegam a pequenos detalhes. Sendo assim, para celebrarmos esse Dia da Língua Portuguesa, nada melhor do que mostrar como os humanos também se relacionam muito mal com ela, só que não do jeito que o senso comum imagina. A relação conflituosa entre homem e língua não ocorre porque este "assassina" aquela, ou porque não a conhece bem; o problema real está mais para um tipo de falta de respeito por quem ela é. Os humanos estão vivendo um relacionamento com seus idiomas que tinha tudo para ser ótimo se houvesse mais aceitação e menos expectativas. Há muitas maneiras de abordar essa relação difícil, e não tenho a pretensão de esgotar esse assunto em um texto (não tenho nem mesmo a pretensão de conhecer todo o assunto), por isso hoje vamos entender um pouco esse problema.

É irônico pensar que uma das maiores agressões contra língua portuguesa talvez esteja na tentativa de defendê-la. Aqueles que levantam a bandeira de proteção à língua e que denunciam supostos maus-tratos sofridos por ela podem até ter boas intenções (acreditar nisso ajuda a manter a sanidade), mas quando defendem a "tão maltratada língua portuguesa" estão supondo, primeiro, que ela precisa de proteção, segundo, que esses maus-tratos existem, ambas suposições baseadas na ideia de que a língua é uniforme. Contudo, não é difícil perceber que ela apresenta muitas variações, e é nesse ponto que percebemos o quão poderoso e enraizado é o mito da língua uniforme, imutável, pois os humanos são convencidos de que é muito mais plausível acreditar que todos falam errado, com exceção dos poucos escolhidos, do que aceitar que talvez, só talvez, variação linguística não seja erro.

Segundo o linguista Marcos Bagno, em Preconceito Linguístico - O que é, Como se faz¹, esse não é apenas um mito sobre a língua portuguesa, mas é o mais nocivo dos mitos para a relação entre ela e o brasileiro, uma vez que a seleção de uma variedade da língua como a melhor que as outras não é aleatória. O que é "certo" sempre foi escolhido com base na língua da elite, privilegiando-a em detrimento das classes sociais mais baixas, as quais, por diversos motivos, têm menos acesso as variedades mais prestigiadas do idioma, estejam elas nos jornais, na literatura ou no discurso acadêmico, aumentando ainda mais o abismo da desigualdade social que já existe no Brasil. Nas palavras do autor,
"Como a educação de qualidade ainda é privilégio de muito pouca gente em nosso país, uma quantidade gigantesca de brasileiros permanece à margem do domínio das formas prestigiadas de uso da língua. Assim, tal como existem milhões de brasileiros sem terra, sem escola, sem teto, sem trabalho, sem saúde, também existem milhões de brasileiros que poderíamos chamar de 'sem língua'. Afinal, se formos acreditar no mito da língua única (identificada com a norma-padrão tradicional), existem milhões de pessoas neste país que não têm acesso a essa "língua", que é a empregada pelas instituições oficiais, pelos órgãos do poder ㅡ são os sem-língua. É claro que eles têm um língua, também falam o português brasileiro, só que falam variedades linguísticas estigmatizadas, que não são reconhecidas como válidas, que são desprestigiadas, ridicularizadas, alvo de chacota e de escárnio por parte dos falantes urbanos mais letradas ㅡ por isso podemos chamá-los de sem-língua." (Bagno, p. 29-30)
Como já disse acima, é mais fácil acreditar que milhões falam errado, ou, nas palavras do autor, são sem-língua, do que aceitar a diversidade, mas não deveria ser fácil assim acreditar em coisas tão absurdas, então por que tanta gente acredita? Uma possível resposta para isso é que esse pensamento já vem sendo introduzido no imaginário do brasileiro há muito tempo e, para falar disso, vou trazer aqui alguns momentos da história do Brasil que ilustram bem o quão velho é a rejeição do brasileiro com sua língua.

Em 1757, entrou em vigor o Diretório dos Índios, uma lei que, entre outras coisas, tentava impedir o uso de línguas indígenas em espaços públicos e obrigar o uso do português nas escolas criadas para as crianças das aldeias indígenas contempladas pelo Diretório. Apesar do fracasso da lei em impedir a circulação dessas línguas, ela serve para nos mostrar que já naquele momento havia um desejo das autoridades de tornar o Brasil um lugar monolíngue e ajudou a criar um terreno fértil para o surgimento de polêmicas em torno das variedade populares da língua no século XIX. Se, na metade do século XVIII, o Diretório dos Índios procurava fortalecer o português como única língua (ou a única que importa), no século seguinte, ter uma única língua não era o bastante, ela também deveria ser uniforme, invariável, e, ainda que não houvesse nenhuma lei que sustentasse tal postura, arriscaria dizer que o teor das polêmicas que se instauraram, na época, em torno das variedades populares do português, foi tão eficaz que continua presente até hoje no imaginário popular.

Em História Sociopolítica da Língua Portuguesa², o professor Carlos Alberto Faraco destaca que, na segunda metade do século XIX, José de Alencar, autor muito reconhecido hoje por sua grande importância para a língua e literatura de língua portuguesa, foi "atacado" por puristas que o acusavam seus textos de terem muitos "erros" de português. Isso é importante para entendermos o que estava acontecendo. Alencar ㅡ um dos grandes autores brasileiros do século XIX, cuja obra é citada e reverenciada em todo currículo escolar do país ㅡ também foi alvo desse pensamento limitado que hoje se expressa nas redes sociais e na mídia sob o rótulo de "defensor da maltratada língua portuguesa".

Foi nesse contexto que foi fundada a Academia Brasileira de Letras (ABL), interessada em "cultivar" a língua portuguesa. No discurso de Joaquim Nabuco³, um dos fundadores da ABL, em sua sessão inaugural, podemos perceber que a criação dessa instituição é um verdadeiro fruto de sua época. Veja abaixo um trecho desse discurso, citado também por Faraco ㅡ e que pode ser acessado na íntegra no site da ABL. 
"A raça portuguesa, entretanto, como raça pura, tem maior resistência e guarda assim melhor o seu idioma; para essa uniformidade de língua escrita devemos tender. Devemos opor um embaraço à deformação que é mais rápida entre nós; devemos reconhecer que eles são os donos das fontes, que as nossas empobrecem mais depressa e que é preciso renová-las indo a eles. A língua é um instrumento de idéias que pode e deve ter uma fixidez relativa; nesse ponto tudo precisamos empenhar para secundar o esforço e acompanhar os trabalhos dos que se consagrarem em Portugal à pureza do nosso idioma, a conservar as formas genuínas, características, lapidárias, da sua grande época... Nesse sentido nunca virá o dia em que Herculano, Garrett e os seus sucessores deixem de ter toda a vassalagem brasileira." (Joaquim Nabuco)
Fica clara a relação da busca pela pureza linguística com a busca pela "pureza" de raça. O desprezo pela fala popular, além de tentar manter a hierarquia entre classes sociais, é um ataque à mistura de raças. Desprezar características linguísticas que possam ser associadas ao contato de uma língua prestigiada (no caso, o português) com línguas menos prestigiadas (indígenas e africanas) é só mais uma manifestação de um pensamento racista, que crê na superioridade de uma suposta "raça pura" sobre os "mestiços". A crença na existência de uma raça e uma cultura superiores, e o desejo de unificá-las no país, como podemos perceber, culminou (e ainda culmina) na crença na existência de uma língua superior e no desejo de também unificá-la.

Agora que você conhece esse panorama histórico, só lhe resta juntar os pontos: com o passar do tempo, cada vez mais, foi fortalecida a crença de que o Brasil tem (ou deveria ter) apenas um idioma, o qual deve apresentar uma única forma, não importando região, idade, classe social ou qualquer outra variável. Essa expectativa é constantemente quebrada pela realidade linguística do país; dessa forma, os brasileiros, convencidos da existência da língua "pura", desprezam a realidade, condenam-na, chegam a acreditar que o brasileiro é alguém que não conhece a própria língua, um sem-língua.

Portanto, nesse Dia da Língua Portuguesa, acho que também devemos nos declarar seus defensores. Mas para isso é preciso ressignificar o que significa defendê-la. Está cada vez mais claro para mim que ela é sim maltratada, mas não como imaginam as pessoas que citei no início do texto. Essa defesa precisa ser verdadeira, é preciso defender sua liberdade, seu direito de ser livre e, acima de tudo, defendê-la daqueles que acreditam ser seus donos.


¹ BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 51. ed. São Paulo, SP: Loyola, 2009.

² FARACO, Carlos Alberto. História sociopolítica da língua portuguesa. São Paulo, SP: Parábola, 2016.

³ Discurso de Joaquim Nabuco pronunciado na Sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras, em 20 de julho de 1897. Disponível em: <http://www.academia.org.br/academicos/joaquim-nabuco/discurso-de-posse>. Acesso em: 7 de maio de 2020.

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