Gosto de manga, gosto de manga ou gosto de manga?

O Acordo Ortográfico foi mesmo ruim ou as pessoas são apenas muito apegadas ao que estão acostumadas?
Você consegue se virar sem alguns acentos muito melhor do que imagina

Um dia descobriremos que a linguagem humana surgiu com o único propósito de fazer reclamações. Dizem que somos exigentes só porque demoramos a nos acostumar com uma troca de marca de ração, mas até hoje não vi especie mais sensível a mudanças e disposta a reclamar dessas do que esses bípedes falantes. Basta uma única alteração no mundo a sua volta, seja um novo estilo de corte de cabelo, a roupa que os jovens estão usando ou as músicas novas entre as mais tocadas e pode ter certeza que os humanos começarão a reclamar  talvez seja essa aversão ao novo que os torne tão propensos a tradições e tão inaptos à ciência.

Ironicamente, se a linguagem deles de desenvolveu como uma ferramenta de reclamação, é justamente dela que eles parecem mais reclamar. Eu levaria muito tempo para listar aqui tudo que já ouvi, então, inspirado pelo texto da semana passada, focarei na ortografia.

Em 1990 foi assinado o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO/1990), cujo objetivo era unificar a escrita dos países lusófonos (que possuem o português como língua oficial). Não discutirei aqui se isso foi necessário ou mesmo eficaz. Aconteceu. Já passou. Quero chamar a atenção para a aceitação (ou falta dela) que essas novas regras receberam e, baseado no que disse no começo do texto, imagino que vocês já sabem a resposta: o AO não foi muito bem aceito.

Não pretendo julgar o apego que algumas pessoas têm com as antigas regras, menos ainda os motivos por trás disso. Hoje, esses motivos pouco me interessam (podemos voltar a isso em um outro momento). O que me importa hoje é falar de alguns argumentos usados para condenar o novo AO. Sendo assim, quero lembrar (ou avisar para quem não sabe) que isso já aconteceu antes, este não é a primeira vez que a ortografia é alterada à canetada, e provavelmente não será a última, logo, quero que as pessoas mantenham a mente aberta e pensem que as regras que eles tanto idolatram já foram um estorvo para a geração que viveu o AO de 1971, assim como aqueles que entre as décadas de 30 e 40 viveram esse mesmo "crime contra a língua e a boa escrita" também devem ter reclamado muito.

Visto então que o problema não é a mudança em si, vamos olhar para uma ou duas reclamações comuns na internet e analisar se seus argumentos têm alguma razão que não seja puro preciosismo.

Uma das mudanças do último AO foi a eliminação do acento agudo de "pára" (do verbo "parar") cuja função era diferenciar essa forma verbal da preposição "para". Sem esse acento diferencial, alguns críticos dessa mudança acusam o novo Acordo de ter prejudicado a clareza de algumas sentenças como

[1] O trânsito para São Paulo

Antes do AO/1990 não haveria ambiguidade nesse sentença [1] uma vez que "para" sem acento só poderia ser preposição, logo, [1] estaria se referindo a um trânsito que vai até São Paulo. Portanto, após o novo Acordo, supostamente, ficou impossível identificar o real significado de [1] sem a ajuda do contexto. Poderíamos apenas questionar quantas vezes nos deparamos com uma frase sem contexto, ou talvez lembrar às pessoas que não há acento diferencial na fala, mas vamos dar uma chance para esse argumento e deixar ele sobreviver um pouco mais.

Apesar de possuírem a mesma pronúncia  e agora, grafia  o modo como nosso cérebro funciona ao processar linguagem vai muito além do conhecimento superficial que adquirimos com uma metalinguagem gramatical escolar. Calma, eu explico: você talvez não se lembre de categorias como verbos e preposições, nem das relações sintáticas de subordinação, mas seu cérebro não é nada superficial quando processa uma sentença.

Quando lemos "para" como verbo, ficamos satisfeitos com o resultado: "O trânsito" ocupa a posição de sujeito do verbo e "São Paulo" ganha a função de complemento verbal. Tudo se encaixa. Sabemos o que está sendo dito.

Para = verbo
O trânsito = sujeito do verbo parar
São Paulo = objeto do verbo parar

Mas tentemos pensar em "para" como preposição: "para São Paulo" agora está apenas especificando o "trânsito", este é o trânsito que vai para São Paulo, mas e daí? O que tem o trânsito para São Paulo? Está grande? Está pequeno? Foi causado por um ataque alienígena? Nesse momento seu cérebro quer algo a mais, ele não aceita essa frase assim, sem mais nada, o que só mostra o quão absurdo é querer separar uma frase de seu contexto, pois uma frase como essa ("para" sendo preposição) jamais estaria sozinha, a não ser em exemplos desonestos como [1]. Veja os exemplos abaixo e seja sincero: você precisa mesmo desse acento?

[2]
a. O trânsito para São Paulo nunca foi tão grande
b. Você acha que aqui está ruim? Precisa ver o trânsito para São Paulo
c. Qualquer problema nas marginais e o trânsito para São Paulo

Reforçando o que disse mais acima, você pode não saber dissertar sobre as diferenças entre preposições e verbos, mas seu cérebro sabe ㅡ da mesma forma que, entendendo ou não como funciona o seu sistema respiratório, você está respirando agora ㅡ; o acento diferencial podia ter seu valor, mas isso não o torna indispensável.

Também podemos falar da queda do acento circunflexo em "pêlo" que era usado para diferenciar o substantivo ㅡ que dá nome àquilo que os humanos gostam de tirar de seus corpos (e quando não têm mais para tirar acham uma boa ideia tirar o nosso) ㅡ da preposição "pelo" (contração da preposição per + o). Assim como em "para", a falta de acento diferencial em "pelo" causaria falta de clareza em pouquíssimos exemplo e, somente se, ignorarmos o contexto. Façam o exercício de pensar em diversas frases com "pelo", em seus diferentes sentidos, e percebam como é difícil pensar em um exemplo que corrobore a preocupação que a falta de acento gera para a clareza da frase.

Porém, quero ainda dar outra chance para essa reclamação sobre o AO: vamos supor que, apesar de tudo que já dissemos, a preocupação com essa mudança seja realmente devido a essa falta de clareza (e não apenas apego sentimental ou algo do tipo). Logo, para que haja coerência, outros casos como esses (palavras iguais, sentidos diferentes) necessitariam de atenção, por exemplo:

[3] Gosto de manga

Essa simples frase, se descontextualizada, poderia gerar dúvidas quanto ao seu significado. "Manga" pode significar a parte da roupa que cobre os braços ou ser o nome de uma fruta (ambos substantivos); "gosto" pode ser um substantivo que identifica a sensação percebida pelo paladar, sinônimo de "sabor", ou a 1ª pessoa do singular de "gostar" (nesse caso temos uma mudança na pronúncia, mas a mesma grafia). Em [4] combinamos esses significados e chegamos às seguintes leituras de [3].

[4]
a. A fruta preferida dele é banana, eu gosto de manga
b. Você experimentou a sobremesa que eu fiz? Acho que ficou com gosto de manga
c. Gosto de manga mesmo, só uso regata na academia

Pensem comigo: se a ausência de acento diferencial em "para" e "pelo" é motivo de revolta, mesmo que a diferença entre preposições, substantivos e verbos seja facilmente identificada, por que não há revolta com a ausência de acento diferencial em "manga", uma palavra com significados totalmente diferentes mas que pertencem à mesma classe gramatical? No caso de "gosto", temos diferentes classes gramaticais e pronúncias, mas a mesma grafia. Isso não deveria justificar uma nova reforma ortográfica que garanta maior clareza no uso dessas palavras? 

A melhor resposta para essas perguntas talvez seja aquilo que disse no começo do texto, humanos odeiam mudanças. A extinção de um acento diferencial em alguns casos incomoda porque antes ele existia, a inexistência do acento diferencial em outros casos não incomoda porque ele nunca existiu. Penso que, para algumas pessoas, são exatamente esses pequenos detalhes da escrita que importam, pois é com eles que julgam o outro. Sem esses preciosismos ortográficos o valentão perde a força.

Placa em prédio em Portugal anterior à Reforma Ortográfica de 1911 

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