Uma folga e "O valentão da ortografia"

Por que as pessoas confundem "mas" e "mais" quando escrevem?
Isso pode estar ligado à maneira como falamos 

Andei muito ocupado esses dias. Todo mundo sabe que em tempos de crise somos nós, os cachorros, que seguramos a onda dos humanos. Dito isso, não tive tempo essa semana de produzir nada para o blog, nem mesmo tive uma boa ideia, e nesse momento de fragilidade meu estagiário resolveu se aproveitar. Ele sabe o quanto, às vezes, nós nos apegamos aos humanos... segue o diálogo que tive com ele:

Caio: Noam... já é final de semana, né?
Noam: Sim.
Caio: E você não postou um texto ainda, né?
Noam: Não, não postei.
Caio: Você ainda nem pensou no que escrever, né?
Noam: Não...
Caio: Então... uma vez escrevi um texto no meu facebook..
Noam: Uhm...
Caio: E eu podia deixar você usar ele...
Noam: Uau, que privilégio.
Caio: (fazendo cara de humano sem dono) ??
Noam: Ok! Ok! Eu publico o seu texto, mas faça uma revisão antes, acrescente alguma coisa. Aqui não é suas redes sociais pra colocar qualquer coisa

Então é isso. Segue abaixo o texto da criatura. Sejam bonzinhos com ele.


O valentão da ortografia 
(Texto original publicado no perfil de Facebook de Caio Graco Rodrigues no dia 01 de novembro de 2016.)

Há sempre alguém querendo desmerecer quem "não sabe" a diferença entre "mas" e "mais". Aparentemente, quem comete o imperdoável crime de não saber a diferença entre uma conjunção adversativa e um advérbio está assassinando a língua, entre outras acusações. Minha hipótese sobre essas pessoas é que elas aprenderam (lê-se: decoraram) essa regrinha, entre dezenas de outras que os manuais do "bom português" apresentam, e agora tentam se afirmar superiores com base nela, como todo bom valentão que precisa diminuir alguém para se sentir superior.


Não digo que a escrita padrão não deva ser ensinada ㅡ como linguista, não cometeria a gafe de negar que a nossa sociedade fecha portas para aqueles que, segundo o senso comum, não dominam a escrita (e a fala) como deveriam; como professor, quero garantir que nenhuma porta será fechada para meus alunos ㅡ, porém, se ao menos essas regras fossem bem embasadas, em vez de apenas jogadas em direção ao aluno (quem conseguir que agarre uma), não só poderíamos ter aulas muito mais interessantes como também mostraríamos que a língua pode, e deve, ser vista como um objeto de estudo em todos os seus fenômenos, ao contrário dessa coisa dura, fria e sem vida que tentam nos convencer que é o português.

O caso do mas/mais por exemplo, uma regrinha decorável que pode ser (mal) ensinada em poucas linhas:

- "mas" é conjunção adversativa, tem o mesmo sentido de "contudo/porém/entretanto...";
- "mais" é advérbio, o contrário de "menos";

Fácil, não? Por outro lado, podemos começar uma aula pensando sobre nossa pronúncia: quantas pessoas, e em que contextos, realmente falam "mas"? Normalmente falamos "mais", assim como falamos "arroiz", "capaiz", "trêis", "inglêis", "atráis". Com esses exemplos já temos um padrão: sílabas finais terminadas em /s/ tornam-se ditongos (encontro de duas vogais).

Nesse ponto, levanta-se outra questão: já que muitos escrevem "mais" porque é assim que escutam, por que vemos vários casos de "mais" sendo escritos (no lugar de "mas"), mas poucos exemplos de "arroiz", por exemplo? Podemos considerar que, ao contrário de "arroiz", "trêis", "capaiz", a grafia "mais" existe na nossa escrita, ou seja, ao contrário daquelas, esta não é uma grafia incorreta que pode ser mais facilmente descartada como opção na hora da escrita (o word não vai destacar a palavra "mais", seu smartfone não vai sugerir outra opção e, principalmente, seu cérebro não te falar "eu acho que nunca vi essa palavra antes). Portanto, outra hipótese é que ambas as formas (mas/mais) existem, com sentidos diferentes, e o nosso cérebro nos leva a seguir o caminho mais lógico: escrever como falamos (se a ortografia assim nos permitir).

Toda essa discussão pode ser muito mais complexa e detalhada do que coloquei aqui, mas isso só mostra como muita coisa legal pode ser feita apenas mudando a maneira como vemos um mesmo fenômeno. Quantas vezes o ensino tradicional de gramática nos tirou o prazer de perceber que a língua, assim como outros objetos da ciência, pode ser vista e pensada como algo vivo, algo a ser descoberto junto com o professor, e não apenas mostrado como se todas as respostas já estivessem dadas, pois não estão, nem mesmo as perguntas já foram todas feitas e é isso que torna a ciência algo tão interessante. Há quem prefira apenas decorar a regra mais simples (serve para não perder aquele pontinho no vestibular), mas limitar-se a ela só contribui para essa visão simplista da língua.

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