Manifesto em defesa do bom-dia

Existe hora certa para falar "bom dia"?
Convencendo pessoas implicantes de que qualquer hora merece um bom-dia

Humanos têm estranhos hábitos de interação que eu talvez nunca entenda. Um deles é a quase obrigatoriedade de desejar "bom dia" uns aos outros, sempre que se encontram. Aparentemente, é uma saudação genérica usada em dias comuns que não significam nada; não é "feliz natal", "feliz ano novo", "feliz dia da árvore"? Então é só um "bom dia", até que se decida algo mais interessante para se dizer nesta data.

Simples, não? Claro que não! Depois de todo esse tempo comigo vocês ainda não entenderam que os humanos nunca deixam nada ser simples?

Se você tem um humano em casa, veja como ele interage com outros que acabou de encontrar. Em algum momento, um deles dirá ao outro "bom dia" e terá como resposta algo como "Boa tarde, né?". Percebe agora o que eu estou dizendo? Eles criaram regras para o uso de uma das expressões mais genéricas que usam e, ainda por cima, levam muito a sério tais regras, pois adoram corrigir aqueles que as transgridem. A regra, para quem não conhece, parece ser bem simples: "bom dia" é usado até o meio-dia; a partir disso, até que escureça, usa-se o "boa tarde"; e então, "boa noite", até que o sol nasça de novo. Não é preciso pensar muito para perceber o quão arbitrários podem ser os critérios usados por eles e, por isso, resolvi que deveria propor a eles uma reflexão e, quem sabe, uma solução para esse "problema" que eles mesmos criaram.

Manifesto do bom-dia

A obrigação do uso de "boa tarde" parte do pressuposto de que, após meio-dia, o dia acabou e começa outro período (a tarde), contudo, já existe um nome para esse período de luz do sol que antecede a tarde, chama-se "manhã"; logo, seria mais lógico que as saudações se dividissem entre "boa manhã" e "boa tarde", pois, dessa forma, evita-se a ambiguidade da palavra "dia", que possui muitos significados. Outra incoerência ㅡ e por que não dizer injustiça ㅡ é que o boa-noite tem o benefício de ser completo, emancipado do relógio, já que mesmo que este diga "são 2 horas da MANHÃ", os humanos dizem uns aos outros "boa noite". O boa-noite se submete apenas à natureza, já o bom-dia, coitado, foi colocado sob a arbitrariedade humana.

Um caminho interessante é pensar sobre o significado de "meio-dia" (e meia-noite). Considerando o nome que damos a essa hora específica (12 horas) e a posição do sol nela que, na nossa imaginação, está na sempre na metade do seu "trajeto", podemos imaginar que "meio-dia" se refere a metade do momento que chamamos de "dia", logo, nessa hora específica, o dia está equidistante do seu início e do seu fim, ou seja, tanto o que vem antes quanto o que vem depois dessa hora é "dia". Essa reflexão pode ser um modo de justificar o uso do bom-dia em qualquer momento em que haja sol.

Mas o que podemos fazer para ajudar esses bípedes a não se embananarem com suas preciosas saudações? Podemos começar com duas propostas:

(1) considerar que o dia (conjunto de 24 horas) é dividido, apenas, em "dia" e "noite". 

(2) considerar que o dia é dividido em 4 partes (manhã, tarde, noite e madrugada), cada uma com sua própria saudação. 

A opção (1) tem a vantagem de simplificar as saudações, pois o critério para a escolha correta delas passará a ser apenas a presença, ou não, da luz solar, contudo, permanece a ambiguidade da palavra "dia", que pode ser o dia completo ou apenas a parte dele em que o sol está presente. A opção (2) evita essa ambiguidade, pois "dia" fica reservado apenas para o dia inteiro, mas complexifica as saudações, principalmente por perdermos a referência da luz do sol, ficando obrigados a consultar um relógio. 

Alguns talvez prefiram a opção (2), pois ela acrescenta rigor, complexifica e aumenta as chances de poder corrigir aqueles que erram. Outros preferirão a opção (1), que simplifica, coloca todos em maior contato com a natureza e diminui as chances de gerar brigas logo após o almoço.

Entre essas opções, eu ficaria com a primeira. É mais pacifista, menos normativa, mas não podemos subestimar os problemas que ela também pode gerar, como, por exemplo, a indecisão sobre qual saudação usar durante um crepúsculo (a transição entre dia e noite, não o filme), que seria uma terra de ninguém, em que aproveitadores veriam uma brecha para criar suas próprias regras para oprimir os desavisados. 

Portanto, concluo esses pensamentos com uma nova proposta: usar o "bom dia" a qualquer hora, com ou sem luz do sol, com ou sem o auxílio de um relógio, pois todas as horas de um dia estão contidas dentro disso que chamamos de "dia". Acabam-se os mal-entendidos, as brigas, e você não terá com o que se preocupar caso acorde em um cômodo totalmente fechado, sem janelas ou qualquer referência do mundo lá fora e queira cumprimentar e agradecer à pessoa que virá entregar sua refeição uma vez ao dia.

Uma última vantagem a ser mencionada é a possibilidade de encerrar este texto, sem me preocupar com o momento em que você o está lendo, e dizer, sem medo de errar: tenha um bom dia!