A regra é clara... às vezes

Qual a semelhança entre um linguista e um biólogo?
O linguista é aquele que descreve a língua, não aquele que vai tentar dizer como ela deve ser

Já faz algum tempo que escrevi para vocês, no meu primeiro texto para esse blog, que uma das grandes descobertas da ciência foi a "inteligência" e a capacidade de adquirir linguagem do homo sapiens. Quando esse fenômeno começou a ser observado, nós, cachorros, fizemos o que qualquer espécie razoavelmente inteligente deveria fazer diante de dados até então desconhecidos: aceitamos nossa ignorância e abanamos o rabo para essa essa nova fase de descobertas que se iniciava.

Para os cachorros que me acompanham, eu posso estar sendo um pouco óbvio, mas, infelizmente, muitos humanos ainda precisam aprender isso, então preciso tratar disso com calma.

Para começar, imagine um zoólogo negando a existência chimpanzés, só porque acham orangotangos mais simpáticos; agora imagine um botânico olhando para uma raiz em particular e dizendo que ela não deveria existir daquele jeito; imagine, quem sabe, um grupo de biólogos pedindo a destruição de uma nova forma de vida recém descoberta, porque ela não consta em nenhum livro conhecido. Parecem um pouco absurdas essas suposições, não é mesmo? Agora volte ao início do parágrafo e releia os exemplos trocando novas formas de vida, primatas e raízes por coisas relacionadas à língua. Imaginem linguistas negando que as línguas mudam, ignorando palavras novas e se unindo pedindo o fim de um dialeto. Talvez as afirmações estejam menos absurdas agora, talvez você já tenha dito uma ou outra variação delas; porém, para a linguística, elas continuam absurdas.

Sabemos que as línguas são vivas, sabemos que apresentam variações e que essas variações podem gerar mudanças; sabemos que no decorrer da histórias algumas línguas morrem, algumas deixam descendentes, outras surgem e trazem consigo características de antepassados; sabemos que o contato entre duas (ou mais) línguas pode gerar descendentes que compartilharão características comuns. De muitas maneiras, uma língua se assemelha a um ser vivo, mas parece ser difícil para muitos humanos aceitar essa verdade.

Ainda que a linguística já entenda isso há muito tempo, o senso comum sobre as línguas (e sobre os linguistas) está repleto de preconceitos. Para resolvermos parte desse problema, vamos fazer aqui a problematização de uma palavra muito usada, mas pouco discutida. Em seguida, vamos ver como essa problematização se aplica ao estuda da língua.

Regra: "O que é" versus "O que deve ser"

Em um primeiro momento, o conceito de "regra", seja no senso comum ou no dicionário, é semelhante a "lei" ou "norma"; uma regra é aquilo que um indivíduo ou um grupo deve seguir porque assim foi determinado por indivíduos ou grupos. Uma criança deve obedecer regras impostas por seus pais, um aluno deve seguir as regras de sua escola, o cidadão deve acatar as regras de seu país; caso não o façam, a criança ficará de castigo, o aluno será suspenso e o cidadão poderá ser preso. 

Por outro lado, "regra" pode ser um padrão, algo que não foi imposto, mas que é comum, que possui regularidade. É regra que uma criança diga suas primeiras palavras entre 1 e 2 anos de idade, é regra que um aluno goste de feriados prolongados, é regra que cachorros sejam mais legais que gatos e, caso nada disso ocorra como o esperado, tudo bem. Talvez a criança só demore um pouco mais que a maioria para começar a falar, talvez o aluno goste da escola mais do que da sua própria casa e talvez... bem... talvez gostar mais de gatos seja realmente um problema, mas não é isso que importa agora.

O que quero dizer é que, nesse segundo significado, regras não são prescritas, elas são descritas. Foi isso que lhe causou estranhamento quando você tentou imaginar os biólogos nos exemplos que eu propus alguns parágrafos acima. A ciência não decide como o mundo é com base em opiniões, gostos pessoais ou tradição, ela não prescreve o mundo como ele deve ser, ela o observa e descreve como ele é.

O que é regra para a linguística?


A essa altura já deve estar muito claro que o objetivo da linguística é estudar a língua como ela é, independentemente de qualquer julgamento que se tenha sobre ela, mas se você vive no mesmo mundo que eu, também já percebeu que o que já é óbvio para os linguísticas, não só está muito longe de ser óbvio para a maioria dos humanos, como qualquer um pode ser visto como louco ou ignorante se tentar questionar algumas das crenças acerca da língua. 

Existe ainda no senso comum uma fé cega nos manuais de gramática tradicional. Isso pode não parecer grande coisa em um primeiro momento, mas as consequências disso não são poucas e nem pequenas. Se as regras de uma língua são leis, qualquer desvio deixa de ser simples variação linguística, e passa a ser uma contravenção. Se uma variedade linguística é só um desvio daquilo que é regular, ela deve ser estudada, compreendida; se uma variedade linguística é uma contravenção, ela deve ser combatida, e é essa ideia tradicional de "regra" (como uma lei), e do ímpeto de "fazer justiça" que dão base para muitos dos preconceitos e atitudes que já discutimos em outros textos e que ainda discutiremos em textos futuros.

Um exemplo de aplicação do conceito de regularidade na língua foi a nossa discussão sobre a concordância, ou não, da expressão "obrigado" (texto sobre o uso e a concordância do "obrigado"). Em poucas palavras, quando dizemos que "obrigado" é um adjetivo (pode se flexionar em número e gênero) estamos descrevendo o seu padrão de comportamento, o seu modus operandi; em seguida, quando apresentamos evidências que às vezes ele está agindo como interjeição (sem se flexionar), estamos mostrando um desvio de sua regra, de sua regularidade e, como um biólogo que encontra uma nova forma de vida, o linguista deve registrar essa nova forma e não fingir que ela não existe ou que deva ser extinta.

Alguns, apesar de não negaram a importância dessa discussão, dizem que o lugar dela está bem definido dentro dos muros das universidades e que lá deve ficar, mas estão errados. Uma boa educação linguística nas escolas não apenas evitaria muitos dos problemas que tento sempre discutir por aqui, mas também ajudaria a fortalecer o pensamento crítico e científico nos seus filhotes.

Devemos abolir o outro sentido de regra?

Imagino que muitos ao chegarem aqui devem estar se fazendo essa pergunta. Digamos que nesse tipo de debate é regra que esse questionamento seja feito.

Não vou me estender nesse ponto, pois quero voltar nele com mais atenção em uma outra ocasião, então por ora fique com uma resposta simples: a questão não é escolher um sentido de uma palavra e abolir o outro. O que devemos fazer, e o que eu tentei fazer aqui, é problematizá-los, entender suas diferenças, contextualizar suas aplicações. Os humanos ainda se sentem muito desconfortáveis com incerteza. O "não sei" é raro em suas bocas. Esses primatas ainda não perceberam que novos conhecimentos surgem de boas perguntas, não de afirmações categóricas. 

Comentários

  1. Que catiorro sagaz vc tem, ein senhor Graco!
    Se fosse um dog basset, poderíamos dizer que ele é um sociolinguíço? Kkkkkkkkkkk parabéns! Uma reflexão muito necessária.

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