Cada caso é um caso

Você entende a diferença entre "eu", "me" e "mim"?
Aprendendo latim e pronomes pessoais ao mesmo tempo

Devo admitir: não fiquei totalmente satisfeito com o texto da semana passada, e não foi só porque ele deveria ter sido sobre o Dia do índio e saiu quase uma semana atrasado, mas porque ele me deixou a impressão de ter perdido a chance de falar um pouco mais sobre o porquê daquele comportamento dos pronomes pessoais. Então pedi ao humano que trabalha para mim comigo que relesse a publicação e me dissesse, sem medo de represálias, se estava clara a minha explicação sobre o uso dos pronomes pessoais e suas diferentes funções em uma frase. Ele me disse que estava um pouco confuso. Perguntei se dava para entender. Disse que só um pouco. Mordi ele. 

Embora eu não espere muito dele nesses assuntos ㅡ quem o conhece dirá que ele é professor de gramática, mas não sabem que sou eu quem prepara as aulas ㅡ, entendi que alguns pontos podem ter um pouco negligenciados, já que o foco do texto era falar sobre alguns preconceitos (linguísticos e sociais), sendo assim, hoje quero dar uma explicação diferente sobre esses pronomes e, para isso, voltarei um pouco no tempo.


O português, assim como outros idiomas (como por exemplo, o espanhol e o italiano) é conhecido como uma língua latina, ou seja, uma língua cujas origens se encontram no latim. Você provavelmente já ouviu esse nome antes. É aquilo que alguns humanos mais velhos dizem ter visto na escola, você também deve ter ouvido advogados e juízes usando expressões desse idioma para ninguém mais entender o que eles estão tramando, contudo, acho que o uso mais legal do latim seja explicar coisas sobre o português.

[1] Puer puellam amat
    "O menino ama a menina"

O "amat" é "ama", fácil de entender para um falante de português, "puer" significa menino e "puellam" menina. Agora que você compreende um vocabulário básico, traduza as sentenças abaixo.

[2]
a. Puer amat puellam
b. Amat puellam puer
c. Puellam puer amat
d. Puellam amat puer 

Acredito que você tenha encontrado em [2] alguma frase com o significado semelhante ao de [1], em outra, talvez, você entenda que "a menina ama o menino" e pode ser até mesmo que alguma delas esteja ambígua para você. Entretanto, você pode perceber que eu estou tentando te enganar e que todas elas signifiquem a mesma coisa. Sim. Todas essas sentenças possuem o mesmo significado  que [1] com, no máximo, alguma diferença quanto a ênfase que cada elemento está tendo.

Essa confusão acontece devido a diferença entre o latim e o português na maneira expressar a função sintática de alguns elementos. Em outras palavras, o português e o latim usam diferentes estratégias para dizer como os elementos de uma sentença se relacionam entre si. Ainda confuso? Com os próximos exemplos ficará mais simples, prometo. Vamos retomar a tradução de [1] e olhar para ela mais atentamente.

[4] O menino ama a menina
   [o menino] [ama] [a menina]

Perceba que tanto [o menino] quanto [a menina] são nomes muito semelhantes e diferem em suas terminações (respectivamente -o e -a), as quais, no português, carregam algumas informações que precisamos para interpretar a sentença. Nesse caso, -o nos diz que o nome é masculino e singular enquanto -a indica feminino e singular. Contudo, a maneira como esses elementos se relacionam entre si depende de suas posições em relação ao verbo [ama], logo, se alterarmos essa ordem, alteramos o sentido.

[5] A menina ama o menino
  [a menina] [ama] [o menino]

A pessoa que está amando e a pessoa que está sendo amada mudam, no português, quando mudamos a ordem da sentença. Ainda que em muitas ocasiões seja possível brincar com a ordem dos elementos de uma frase (já tentou entender o Hino Nacional Brasileiro?), o português prefere usar a posição dos elementos para determinar suas funções.

E o latim? Você deve estar perguntando. O latim usa uma estratégia diferente: da mesma forma que a terminação dos nomes em português podem dar informações como gênero (masculino e feminino) e número (singular e plural), a terminação dos nomes em latim nos informam também qual a sua função dentro da sentença. Voltando ao vocabulário que aprendemos em [1]: "puer", entre outras informações, está no dizendo que é o sujeito da frase, é aquele que ama; "puellam", da mesma forma, nos diz que é o complemento do verbo, é aquela que é amada. Releia os exemplos de [2] e veja que em qualquer ordem apresentada, todas as palavras estão escritas da mesma forma, o que significa que todas podem ser traduzidas igualmente.

É nesse momento que surge a dúvida, como então o latim expressa outra relação entre esses elementos? Simples. Mudamos a palavra para que ela, independentemente da posição que ocupe, passe a significar a função que você deseja. Trocaremos então "puer" por "puerum" e "puellam" por "puella" e em todas as sentenças de [6] teremos que "a menina ama o menino".

[6]
a. Puella puerum amat
b. Puella amat puerum
c. Amat puerum puella
d. Puerum puella amat 
e. Puerum amat puella

E por aí ad aeternum. 
Um pouco pesado até agora, né? Estamos acabando, prometo! Porque agora que você aprendeu que o português e o latim usam diferentes estratégias para expressar funções sintáticas eu posso dizer uma coisa: pois é, nem sempre.

Calma! Não feche a página ainda! Não, eu não estou brincando com você. O que estou tentando dizer é que o português, como um legítimo descendente do latim, compartilha algumas características com seu antepassado. É ai que entram os pronomes pessoas de que tanto falei na publicação da última semana. Se não acredita em mim, acredite em Ismael de Lima Coutinho, que escreveu em sua Gramática Histórica¹.
"De tôdas as classes de palavras são os pronomes pessoais que mais fielmente guardam os vestígios da declinação latina. 
Os da 1ª e 2ª pessoa originam-se dos de idênticas pessoas no latim. O de 3ª proveio do demonstrativo ille (...)"
Por isso, quando estamos na escola e olhamos para a tabela abaixo, ficamos um pouco assustados com os alguns nomes e nos perguntando "por que tem que ser tão difícil?". Por isso, também, muitas pessoas, infelizmente por causa de alguns professores, decorem regras simplificadas como aquelas que discutimos semana passada. Mas eu tenho uma boa notícia para você que não desistiu de mim até agora: esse assunto começa muito fácil para você. Eu só preciso te dizer que esses pronomes ainda preservam um pouco daquela estratégia do latim que nós vimos há pouco. A separação dos pronomes pessoais nada mais é do que a separação entre pronomes que podem exercer a função de sujeitos e predicativos (pronomes do caso reto) e pronomes que podem exercer a função de complementos do verbo (pronomes do caso oblíquo).

Assim como vimos semana passada, a restrição de posicionamento do pronome "mim" nada tem a ver com estar ou não antes ou depois de um verbo, e o mesmo vale para o restante da tabela. O que determina, o que realmente importa, para entendermos o uso desses pronomes em uma sentença é a função sintática que eles devem exercer ou, em outras palavras, a qual caso pertencem.

[7]
a. Eu entreguei essa carta                              "Eu" - pronome reto - sujeito de "entregar"
b. Entregaram essa carta para mim             "Mim" - pronome oblíquo - complemento de "entregar"

Tentei propor aqui uma maneira um pouco diferente de explicar os pronomes pessoais. Ao menos diferente do que tradicionalmente vemos na escola. Ao invés de começar pelo fim, e simplesmente decorar o que significa cada conceito e em que lugar se encaixa cada pronome, eu quis oferecer uma opção meio maluca, começar pelo início, o que, na minha humilde opinião, dá muito menos oportunidade de generalizações mal feitas como as que costumamos ver por aí.

¹ COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramatica histórica. 6. ed. rev. Rio de Janeiro, RJ: Acadêmica, c1974.




AVISO!
Foi muito difícil aturar meu humano me atormentando para que eu fizesse algum trocadinho sobre ser um cachorro e conhecer a língua latina, mas eu me recuso a descer ao nível dele e qualquer gracinha com o tema que possa aparecer aqui é de sua total responsabilidade.




Comentários

  1. Caio, adorei o seu blog. Eu ainda não conhecia. Muito útil e explicado de um jeito divertido e didático. Essa tema dos pronomes é bem importante e sua explicação pode ajudar muitas pessoas. :)

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    1. Valeu mesmo!
      Eu ainda tenho a impressão que cada texto tem um tom diferente. Não sei se isso vai continuar assim ou se eu ainda não encontrei o estilo do blog.

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  2. Respostas
    1. É meu humano que só tem a função de comprar minha ração, editar meus textos e me levar pra passear

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