Isso fica entre mim e você

Preconceito nas redes sociais
"Mim" não é "coisa de índio"

No dia 19 de abril "comemora-se" no Brasil, e em alguns outros países, o Dia do Índio. Esta data deveria ser uma oportunidade para que os humanos refletissem um pouco sobre alguns erros cometidos por eles, mas refletir gera mudanças e, como sabemos, humanos odeiam mudanças. Logo, no lugar de reflexão, temos senso comum.

Todo ano é a mesma coisa: chega o dia 19 e abril e as redes sociais mostram o quanto humanos não entendem o real sentido dessa data e compartilham imagens como essa:


Existem muitas coisas que precisam ser problematizadas aqui, a começar por como os homo sapiens tratam uns aos outros, mas agora quero falar com vocês sobre a base gramatical do "argumento" acima, não sem antes apontar aqui dois pontos pacíficos: [1] apesar da imagem acima se referir a quem "escreve", o julgamento também é contra quem fala, pois as pessoas costumam não fazer as distinções apropriadas entre essas modalidades; [2] essa é uma imagem preconceituosa, ela parte dos pressupostos de que existem formas de falar/escrever intrinsecamente melhor que outras e que indígenas são ignorantes. Sendo assim, não percam tempo tentando negar o preconceito expresso nessa imagem e suas semelhantes. Agora sim podemos ir ao que nos interessa:

A cagação de regra hipótese gramatical que a imagem apresenta é que não existe "mim" antes de verbo, ou que, ao menos, ele não deveria aparecer ali, segundo as regras do "bom" português. Então vamos fazer uma coisa que eu gosto muito: usar o argumento dos humanos contra eles.

[1]
a. Não se preocupe mais com isso, por mim está tudo bem
b. Faça um favor pra mim, devolva esse livro na biblioteca 
c. Para mim é essencial que haja mais investimentos em pesquisas

Esses são alguns exemplos de frases em que o pronome "mim" aparece antes do verbo. Você pode pensar em muitas outras, ou procurar por exemplos em redes sociais, jornais, revistas e livros até se convencer de que essa posição é legítima. Quando isso acontecer você talvez me diga "mas não é antes de qualquer verbo, é antes de verbos no infinitivo que o 'mim' não pode aparecer". Será?

[2]
a. Já fiz tudo que podia, não depende mais de mim ganhar ou perder
b. Comprar carro novo é pra mim jogar dinheiro fora
c. É uma honra pra mim representar o meu país nessa partida

Talvez você agora você esteja se endireitando na cadeira, arrumando o óculos, estralando os dedos e me diga que o problema não é o pronome "mim" estar antes de um verbo, seja ele infinitivo ou não, mas sim a relação sintática do pronome com o verbo, uma vez que enquanto pronome oblíquo ele não deve ocupar a posição de sujeito.


Agora estamos chegando a algum lugar. Se consideramos o que está registrado nas gramáticas tradicionais, está última regra faz todo sentido. Vamos então falar um pouco sobre alguns conceitos antes de continuar.

Chamamos de pronomes pessoais as palavras que substituem nomes e se referem às pessoas envolvidas na comunicação (quem fala, com quem fala, sobre o que/quem fala). Esses pronomes podem ser divididos em dois tipos: pronomes pessoais do caso reto, quando se relacionam com o verbo como sujeitos ou predicativos; e os pronomes pessoais do caso oblíquo, quando se relacionam com o verbo como complementos. Talvez a tabela abaixo ajude a lembrar das aulas da escola.

Voltando agora ao uso do "mim", podemos ver que ele está na coluna correspondente aos pronomes cuja função é ser complemento e é por isso que os manuais de gramática consideram errado quando alguém o usa como sujeito, em [3] podemos ver alguns usos adequados dos pronomes, segundo esses manuais.

[3]
a. O professor entregou a prova para eu fazer de novo
b. O professor entregou a prova para mim
c. O advogado falou para eu separar todos os documentos que me ligassem à empresa
d. O advogado falou para mim que eu deveria separar os documentos que me ligassem à empresa

Até agora, quis chamar a atenção para a ironia que é inventar uma regra, ou simplificar uma regra existente (como no caso da imagem do Dia do Índio), com o objetivo de julgar e humilhar alguém que supostamente não a conhece. Além disso, se fôssemos ensinados a realmente pensar sobre a língua e sua estrutura, em vez de se apegar a uma listinha ultrapassada de regras, perceberíamos algumas coisas bem legais como, por exemplo, o fato de que muita gente faz vista grossa para a gramática quando lhe interessa.

Sendo assim, proponho um exercício simples, mas quero total honestidade de sua parte ao responder as seguintes pergunta: das sentenças expressas abaixo, qual delas você considera parte do almejado português "correto"? E qual delas você acha que não deve ser dita em uma situação formal do uso da língua? Pense um pouco...

[4]
a. Para mim poder fazer isso, preciso de ajuda
b. Preciso que chegue logo as férias para mim descansar
c. Traga os livros para mim ler

[5]
a. Só percebi o que estava acontecendo quando vi ela chorando
b. Não achava justo, por isso enfrentei ele sem pensar duas vezes
c. Não tenho mais as gravações, entreguei elas à polícia

[6]
a. Não acredito que marcaram essa viagem sem eu e ela
b. Existe uma ligação muito forte entre eu e meus fãs
c. Não há nenhuma prova contra eu e ele

Os exemplos de [4] mostram o uso de pronomes pessoais oblíquos em posição de sujeito, o que já vimos que é condenado pelos manuais de gramática. Já nas sentenças em [5], temos a situação oposta, pronomes pessoais retos em posição de complementos, o que é igualmente condenado pelos manuais, mas que costuma passar batido em muitas situações., Por sua vez, as sentenças em [6] são muito usadas, inclusive por pessoas que condenariam veementemente os exemplos de [4] e [5], contudo, são sentenças que também usam pronomes pessoais retos em posições que não lhes cabem segundo as normas.

Ou seja, temos em [4], [5] e [6] exemplos do mesmo tipo de "inadequação" no uso dos pronomes pessoais, mas cada um deles recebe um julgamento totalmente diferente. Podemos ver isso acontecendo, por exemplo, em algumas postagens da página Língua Portuguesa, no Facebook.




Como podemos ver, a postagem propõe mostrar alguns "erros" comuns e a maneira de corrigi-los. Perceba que não há nenhuma intenção de explicar o porquê de cada regra, mas mesmo assim, todas parecem ser prontamente aceitas pelos seguidores da página, menos uma. É fácil encontrar em meio aos comentários dúvidas sobre o uso do "mim" depois de "entre". Muitos ficam incrédulos diante da expressão "entre mim e você" e perguntam se a página não se enganou, pedem para que alguém confirme aquilo e, quando aceitam isso como verdade, dizem que apesar de "certo" é "feio".

Por que isso acontece se todos esses usos são condenados pelo mesmo motivo? Eles não deveriam ser igualmente condenados (ou igualmente aceitos)? Isso ocorre porque esses julgamentos gramaticais são muito mais sociais do que propriamente linguísticos (talvez, quem sabe, eles sejam puramente sociais e nada linguísticos). Os "desvios" de [5] são um pouco mais comuns, e portanto menos perceptíveis, do que aqueles em [4]; por sua vez, os exemplos de [6] são mais comuns que [4] e [5], mas muitos ainda vivem a ilusão de achar que dominam as regrinhas que cobram tanto dos outros. Quando mais pessoas cometem o mesmo "erro", quanto mais esse "erro" é legitimado pelo uso de certos grupos (como a mídia), mais ele nos parecerá normal, aceitável e "sonoramente melhor".

Resumindo, a mensagem que a imagem do Dia do Índio nos traz está errada, não apenas pelo ataque que faz aos indígenas enquanto grupo historicamente oprimido, mas também porque tenta atacar usando uma regra que o autor da montagem não conhece nada bem. As línguas mudam, e talvez as distinções entre os diferentes tipos de pronomes pessoais estejam se flexibilizando no nosso português. E se elas podem, nós também conseguimos, então que tal parar de usar "índio" como ofensa e sinônimo de ignorância?

Por fim, caso não tenha ficado claro, não estou aqui querendo dizer que todos estão errados e deveriam melhorar, tampouco quero dizer às pessoas para pararem de procurar conhecer mais sobre as formas mais prestigiadas do português. Infelizmente, a língua é usada como forma de opressão, então é importante que todos tenham acesso a essas regrinhas que são tão (super)valorizadas, além do mais, estudar um pouco de gramática é um ótimo modo de não ser você aquele que atira pedras em quem "erra", entretanto, para conseguir essas duas coisas, é muito importante perceber que estudar gramática não é decorar regrinhas mal elaboradas, pois, além de não funcionar, é muito chato.

Comentários

  1. Esse texto é muito bom e ajuda a explicar o preconceito linguístico, né? Alguns desvios gramaticais ficam marcados socialmente e outros não. Então as pessoas usam a língua para inferiorizar seus semelhantes, coisa muito comum no Brasil. Classe média inferiorizando classe média, falantes nativos de português que cometem desvios gramaticais na fala (como todos os brasileiros) inferiorizando outros falantes. Bem legal!

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    1. Bem isso.
      O argumento gramatical cai por terra, porque no final das contas o julgamento é social. A gramática só serve quando convém aos preconceitos que já existem

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