O direito e o incentivo à Literatura

Polêmica com o Felipe Neto sobre o ensino de Literatura



Com alguma frequência, o Felipe Neto acaba protagonizando alguma polêmica. Às vezes concordo com ele, às vezes discordo, mas dessa vez, como diz a sabedoria popular, "não concordo e nem discordo, muito pelo contrário". 

Tudo começou com esse tweet¹:


A discussão não é de hoje, as opiniões não são novas, mas com a ajuda do Felipe Neto a repercussão foi bem grande. Então vamos falar só um pouquinho sobre algumas das questões levantadas, não só por ele, mas por alguns comentários que se seguiram, pois as preocupações são legítimas, mas a solução não é simples... nunca é.

A leitura deve ou não ser imposta?

Uma das principais críticas é a obrigação da leitura, que pode "traumatizar" ou talvez gerar algum tipo de raiva contra o conteúdo. Sobre isso tenho duas considerações:

(1) Na escola, o adolescente é constantemente forçado a fazer o que não quer. O mesmo aluno forçado a ler Machado de Assis também é obrigado a memorizar fórmulas, estudar sobre períodos históricos pelos quais não se interessa e entender as funções das organelas. Se o problema é impor um conteúdo ao aluno, deveríamos questionar a escola como um todo (não vejo problema algum nisso, quero apenas tentar ser coerente);

(2) Suponhamos então que, por algum motivo, a imposição só é prejudicial quando falamos da leitura de livros. Impor Harry Potter, por exemplo, não faria o aluno odiá-lo tanto quanto Machado de Assis?

Não é só achar algo que o aluno goste

Talvez você responda que não, que o problema não é forçar a leitura, mas foçar a leitura "errada".

Aqui precisarei discordar, porque leitura é antes de tudo um hábito, algo que se adquire e que se tornará mais natural quanto mais tempo você dedicar a ela, logo, mesmo que você leve Percy Jackson ou Harry Potter para uma sala de aula, ainda haverá muitos alunos para reclamar da tarefa, mesmo que você consiga conquistar alguns deles com uma história mais dinâmica e uma leitura mais simples. 

Isso acontece porque ler requer esforço. Sentar com um livro na mão e dedicar o tempo e a concentração necessários para a leitura exige um tipo resistência que é adquirida na prática, e essa prática precisa de incentivos maiores do que as poucas aulas semanais que o professor tem em suas salas lotadas.

"Mas comigo deu certo"

Quando discutimos o papel da escola na formação do leitor é impossível não pensar em nosso próprio exemplo, e então a matemática é fácil: fui/sou um leitor, logo, a escola conseguiu, não é mesmo? Mas e quanto aos nossos colegas? Quantas pessoas da sua turma, que frequentaram as mesmas aulas e tinham os mesmos professores que você, tomaram gosto pela leitura? Geralmente, a resposta para isso é "poucas" ou "apenas eu".

Se em uma sala com 30 (ou 40, ou 50) adolescentes apenas dois ou três adquiriram o gosto e o hábito da leitura, fica um pouco difícil atribuir esse sucesso especificamente à escola, pois não podemos aceitar que ela funcione apenas para alguns. Em vez disso, é muito mais fácil imaginar que esses leitores foram influenciados e incentivados por variáveis que muitas vezes não estão sob o controle da escola. Isso não significa que o professor falhou, significa que existem fatores sobre os quais ele não tem domínio. Então antes de responsabilizar a escola, seria bom entender o quão complexo podem ser os motivos que levam alguém a gostar de ler.

Não é tão fácil assim adquirir esse "vício"

Acredito que todo mundo conhece um exemplo (talvez até seja um) de pessoa que gostava de ler quando mais jovem, e, por algum motivo, se afastou da leitura. Essas pessoas que, na infância e na adolescência, aprenderam a gostar de ler precisam hoje de algum esforço para recuperar e manter essa prática. Será que isso não é um sinal de que vivemos em um meio muito inóspito para a leitura de grandes livros (ou de livros grandes)? Se manter um hábito já conquistado exige um certo esforço, como podemos conceber que forjar esse costume do zero seja uma simples questão de vontade, algo que se resolve com duas aulas de Literatura por semana?

Aula de Literatura não é clube do livro

Mesmo que todo professor queira ver seus alunos lendo, além do pouco tempo e dos muitos alunos, existe um currículo que deve ser seguido e que, por mais bem intencionado que seja, raramente encontra espaço na realidade da sala de aula. Há uma série de conteúdos que devem ser abordados em sala de aula, uma vez que Literatura é uma disciplina como qualquer outra, e não apenas uma aula de leitura livre a gosto do docente. Caso estivéssemos organizando um clube do livro, a escolha das leituras poderia seguir seus próprios parâmetros, mas existem objetivos demais a serem cumpridos em tão pouco tempo (e com tão pouco incentivo) para que o professor prive o aluno do seu direito de ter acesso aos clássicos baseado, muitas vezes, em um discurso preconceituoso que julga o aluno incapaz de se apropriar dessas obras. Bem como disse o ator e humorista, Paulo Vieira, no Twitter², em resposta ao Felipe Neto: 

Eu cresci num mundo que achava que Machado de Assis não era pra mim. Acho que é um DEVER da escola pública, ao contrário do que pensa a elite, apresentar/devolver a cultura Brasileira aos Brasileiros. Como isso deve ser feito? O DEBATE É ESSE! COMO, e não SE deve ser feito.

E eu com isso?

Minhas primeiras memórias como leitor de literatura são de quando eu tinha mais ou menos 11 anos e duas delas se confundem na minha cabeça, então não sei qual veio primeiro: Harry Potter e a Pedra Filosofal, de J. K. Rowling, após ir ao cinema ver o filme e ficar maluco para saber mais sobre aquele mundo; ou, 20 Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne, depois de assistir um filme³ de ficção científica em que o personagem do Samuel L. Jackson aparece sempre lendo esse livro. Contudo, mais difícil de saber com o que comecei ler é entender por que isso aconteceu.

Eu posso tentar (e já tentei) explicar de várias maneiras o que me fez ser alguém que compra mais livros do que consegue ler. A "culpa" pode ser do cinema, afinal, os dois livros que me iniciaram vieram até mim, cada um a sua maneira, através de filmes; ou talvez tenha sido um pouco antes, quando minha professora da quarta série (atual quino ano do Ensino Fundamental) leu em sala O Pequeno Vampiro, de Angela Sommer-Bodenburg, pois, mesmo que não tenha sido eu o leitor, eu sabia que aquela história estava saindo daquele pequeno livro; outra possibilidade é que, ao ver minha mãe lendo seus romances espíritas, eu tenha sido influenciado a tentar também esse estranho hábito de ficar olhando por muito tempo para um objeto cheio de coisa escrita e sem as imagens, as cores e os sons da televisão; e pode ter sido ainda o incentivo do meu pai, que não demorou para me levar a uma livraria e me comprar o romance do Júlio Verne, só porque eu comentei que estava curioso sobre o livro que o personagem lia com tanto interesse no filme que eu havia visto na noite anterior.

Conto minha própria história para dizer que, sinceramente, não sei o que me fez gostar de ler e com certeza não tenho a resposta final de como provocar essa reação nos meus alunos, porque, como sempre, questões complexas não se contentam com respostas simples. 

Talvez esta seja a única lição realmente possível que fica: é perigoso aceitar soluções simples e milagrosas, pois deixamos de procurar respostas melhores e de fazer as perguntas certas.


¹ Link para a publicação original do Felipe Neto no Twitter
 <https://twitter.com/felipeneto/status/1352832461441560576>

² Link para a publicação original do Paulo Vieira no Twitter

³ Filme Esfera (Sphere), de 1998. Direção de Barry Levinson.

Comentários

  1. Eu criei o hábito por causa da escola, tbm na antiga quinta série. Minha professora, muito brava, deu a lista de 4 livros Para ler ao longo do ano. Lia e fazia um trabalho, e tbm uma prova... Fazia tudo certinho, Pq tinha muito medo dela, e mais medo ainda da minha mãe. Com o tempo, os livros passaram a ser a fuga da minha realidade, no ensino médio, ela passou essas literaturas de Machado etc, foi fácil de ler, devido ao hábito criado. Mas sim, eu era uma das poucas que gostava.
    Parabéns pelo texto, uma boa reflexão.

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    Respostas
    1. Oi, Erica! Muito obrigado!

      E é exatamente assim: a leitura é difícil quando não estamos acostumados. Por isso mesmo que clássicos como Machado ou Alencar aparecem quando, em teoria, o adolescente já teve essa preparação.

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