Matem o mensageiro!

Polêmica com o Google
Como é feito um dicionário?
Será que ele é culpado pelas definições que carrega?

Já está ficando um pouco repetitivo falar da relação difícil que os humanos tem com... bem, com praticamente tudo. Eles dizem que somos seus melhores amigos, e acredito que haja boa intenção nessa fala, mas sejamos sinceros, eles não têm muita opção e, para um cachorro, ouvir essa declaração é semelhante a um filho único ouvir sua mãe dizendo ele é seu preferido.

Entretanto, temos que dar crédito a eles, pois possuem uma incrível capacidade de mudar (mesmo que geralmente se neguem a isso) e, às vezes, reconhecem as próprias falhas. Por isso, resolvi essa semana dar outra chance¹ para meu estagiário mostrar que sabe um pouco do que está falando. Mas primeiro, preciso contextualizar um pouco, pois o texto dele foi escrito no final do ano passado.

Em outubro de 2019, algumas publicações de portais de notícia² começaram a fazer acusações sobre algo preocupante: a pesquisa pela palavra "professora" no Google mostrava o seguinte resultado:


Acho que não é necessário explicar a (justificadíssima) indignação que isso gerou.

Foi a partir dessa polêmica que meu estagiário (na época, ainda desempregado) fez uma reflexão sobre a relação que sua espécie tem com dicionários; um assunto sobre o qual, futuramente, podemos voltar a falar, mas por ora, fiquem com o texto abaixo.


Matem o mensageiro!
(Texto original publicado no perfil de Facebook de Caio Graco Rodrigues no dia 25 de outubro de 2019)

Uma entrada do dicionário online do Google ganhou destaque quando algumas pessoas descobriram que a segunda acepção do verbete “professora” era “prostituta que inicia os adolescentes na vida sexual”. É lógico que essa descoberta não demoraria para ganhar repercussão ㅡ apesar de tal significado já figurar em dicionários desde a década de 70, como afirmaram algumas matérias que abordaram a polêmica atual ㅡ e, como era de se esperar, foi grande a revolta acerca do caso.

Antes de mais nada, quero deixar claro que entendo a revolta. Entendo também a reação da internet ao pedir (e exigir) que a empresa retirasse de circulação essa definição ofensiva. Pessoalmente, acho que um maior cuidado sobre certas acepções poderia ser tomado; por exemplo, uma simples indicação do dicionário de que tal significado é de uso extremamente pejorativo talvez ajudasse a resolver alguns mal-entendidos. Por outro lado, é um mal-entendido linguístico o responsável pelo tipo de reações que estamos vendo.

Nossa educação linguística ㅡ refiro-me aqui ao modo como somos ensinados desde os nossos primeiros anos escolares a entender a língua e a linguagem humana ㅡ é ainda muito simplista e “atrasada”. Se quisermos comparar com outras áreas, podemos dizer que a maneira como as aulas de português ocorrem ainda hoje (em muitos lugares) equivale a limitar as aulas de geografia à simples “decoreba” de nomes de estados e capitais, sem qualquer preocupação real com uma reflexão sobre o objeto de estudo daquela disciplina. É a ausência dessa educação linguística, mais do que qualquer outra coisa, que acredito ser a principal responsável pelo teor da repercussão envolvendo o significado de “professora”.

Reforço: entendo a revolta em relação a existência de tais significados. O que quero questionar aqui é o papel que está sendo atribuído ao dicionário que registra tais formas.

Ainda que seja usado como instrumento de legitimação, um dicionário é, antes de tudo, um registro do léxico de uma língua, ou seja, o conjunto de palavras de um idioma. Sendo assim, o lexicógrafo (ou dicionarista) tem a responsabilidade de registrar os usos das palavras de uma língua. Ele não está lá para dizer como as coisas DEVEM SER, mas sim como as coisas SÃO.

Uma vez registrada em um dicionário, uma acepção como a de professora deve servir sim como alerta. Uma denúncia. O dicionário está nos dizendo onde e em que contexto tal vocábulo está sendo usado e, a partir disso, temos a chance de pensar soluções para esse problema social. Quando, ao contrário, entendemos o dicionário como uma simples ferramenta de legitimação, estamos culpando o mensageiro pela mensagem; estamos dizendo que o historiador que descreve o governo fascista corrobora suas ações; estamos dizendo que os dados sobre desmatamento são os culpados pelas queimadas.

O surgimento de discussões como essa por si só já me parece extremamente vantajoso, pois a reação negativa ao significado pejorativo de “professora” é um bom sinal de que talvez estejamos no caminho certo, de que nos revoltamos com aspectos “doentes” da nossa sociedade. Porém, essa discussão também deve nos levar a outra reflexão, uma que nos leve a entender a função de um dicionário e aprender a usá-lo da mesma forma como usamos (ou deveríamos usar) outros conjuntos de dados sobre a sociedade.

Não se elimina a mensagem apenas matando o mensageiro.


¹ Leia também Uma folga e "O valentão da ortografia".

² Exemplo de publicação feita na época. Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2019-10-21/dicionario-do-google-define-professora-como-prostituta-e-diz-que-e-brasileirismo.html>. Acesso em: 15 de maio de 2020.

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